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segunda-feira, 1 de outubro de 2012

Volteio

Não estava mais lá.
Sem qualquer controle, apertado entre quase tudo que já havia tentado, aquele último movimento de hesitação que precede a queda mais violenta ao fundo do poço ou o triunfo de mãos sustentadas sob estrelas, enfim, cedeu.
Olhei pelos cantos dos olhos, segurei forte a respiração e me voltei para o caminho já percorrido. Nenhum tilintar de faca contra taça dedicando o brinde da noite e tampouco a solenidade do segundo aperto de mãos vulgarmente acanhado, dado com a distância exata de um passo e meio entre nossos sorrisos já amanhecidos. Desapareceu. Afundou pelas entranhas da terra apagando os passos dados a dois e as valsas rasgadas a três.

quinta-feira, 15 de março de 2012

Dia cão (sem gato)

A reta dantes firmemente traçada de um tom preto inquestionável, sóbria e certeira, começa a apresentar algumas falhas, esvaecendo no pontilhado de suas novas curvas e velhas incertezas a frase que cobria todos os outdoors da cidade, num vermelho terrívelmente certo e apaixonado: É pra sempre.

São tempos difíceis — o horóscopo semanal cochichou em meus ouvidos — e eu só desejo de alma e alma passar ilesa, quase-que-inteira, por eles. Por ela.

domingo, 16 de outubro de 2011

Paraty

Olhos abertos, janela pro mar.
Quando fechados, posso apostar que criam o nosso mundo, a nossa casa.
A vontade é te adentrar por cada poro. É sede de te beber inteira, até a última gota.
Brusco movimento em desalinho, o soluço ritmado. Se perder conhecendo todas as curvas do caminho.
Desespero já controlado e aquela felicidade que vem e não parte, não me deixa de lado.
Te querer e te encontrar em vírgulas, em janelas abertas pro mar.


quinta-feira, 13 de outubro de 2011

Os livros

Feito de retalhos velhos e novos.
Aquela saia florida já desbotada agora unida à flanela quadriculada em verde e vermelho parece nunca ter existido antes dessa união improvisada entre angustias e uma breve tentativa ao desapego.
Algumas louças descascadas em suas extremidades ainda carregam dias felizes - outros, nem tanto - à mesa, decorada com o vaso de margaridas meticulosamente posicionado no centro. Mesa onde se reuniam duas pessoas ou o grupo de amigos inseperável da época.
Tivemos muitas épocas, diversas margaridas e minutos interminaveis àquela mesa.
A mesa não coube no baú.
Um par de sapatos. Cheguei a temer a tarefa de escolher um único par de sapatos pra guardar e agora me pergunto: por que carregar sapatos que ocupam o espaço de uma dúzia de memórias que luto pra que não sejam esquecidas? Ficaram lá atrás e tenho medo que um dia se percam umas das outras ou não encontrem mais o caminho da minha casa.
Separei algumas flores secas em potes de vidro. Cada pote uma flor e cada flor um recomeço.
Já repararam no quão parecidas as flores ficam depois de secas? Digo, algumas perdem por completo suas características e passam a ser galhos secos da mesma cor e textura, vez ou outra conservando um cheiro específico. São meus recomeços.
Não identifico mais qual flor definiu qual recomeço, mas sei que foram quatro. Quatro potes, quatro tentativas e a mesma vida dentro de cada pote.
Guardei também cinco novelos de cinco cores diferentes. Estes cinco são descobertas futuras e espero que esses sim mudem meus dias. A gente muda quando a gente cria. Crescemos quando damos vida, e vida ao que quer que seja. Ainda não sei ao que darei vida, mas acho que um par de meias e um casaquinho estão por vir...
Existe o fundo falso no baú, e nesse não me atrevo a mexer. Lá estão as primeiras coisas que achei pelo caminho e desesperada escondi sem saber o que eram. Muito do que fui e hoje já não sou.
Com o baú já abarrotado, tentei em vão achar mais um espaço. Empurrei as fotografias pra baixo, amassei os livros que você me deu e nem assim. Você não coube dessa vez.
De tudo seu, agora restam os livros.

quarta-feira, 31 de agosto de 2011

O primeiro

Debruçada à janela e o rosto de finos traços repousado sobre suas mãos. De seus pés escorria um líquido viscoso, certamente um tipo de mel que tomava por completo o assoalho da sala.
Eram aproximadamente seis e quinze de uma tarde leve, como todas as tardes de primavera costumavam ser. Portas e janelas abertas renovavam com certa constância o ar indefinivelmente adocicado que pairava sob o teto, e depois desta tarde, nada mais voltara a ser cinza ou incompleto.
Avistei-a da porta principal que dava para a sala. Havia silêncio e paz. A paz que se fazia inatingível, intocada.
Muitos haviam passado por aquela casa atraídos pela aura quase angelical que a cercava e nenhum antes atravessara a porta onde eu me encontrava. Alguns por medo. Pensavam que, pisando naquele mel, acabariam envolvidos por ele e ali eternamente permaneceriam, também tomados como o resto da sala.
Outros desistiram antes mesmo de notar a existencia do mel. Desistiram como se, fazendo parte daquela cena, pudessem quebrar o encanto ou tipo de magia que fazia daquela moça debruçada à janela a obra mais bela já vista, quadro que de vida transbordava a pequena cidade.
Arrisquei o primeiro passo inseguro, certo de que um tombo seria fatal, e então, todas as lendas e histórias contadas em seus pormenores pelos que tentaram de algum modo fazer parte daquele ritual se transformariam em única verdade. O encanto seria dolorosamente quebrado.
Tolos. Em pensarem que seriam tomados pelo mel cobrindo o assoalho... Os pés de quem adentrasse aquela sala jamais tocariam o solo, envoltos pela atmosfera divina que então eu descobrira ser emanada daquela moça à janela, assim como o mel que escorria de seus pés.
Ainda incerto, tentei o segundo passo e assim alcancei o céu.
Meus pés nunca mais voltariam a tocar o solo. E eu sabia.

quinta-feira, 7 de julho de 2011

Ba(da)lada final

Sentada em sua poltrona preferida de assento e encosto de couro na cor caramelo ao estilo Luís XV, ela esperava Julio voltar do quarto com o casaco que havia combinado buscar na noite anterior. A velha radiola - mas impecável, como se houvesse acabado de ser desembrulhada - tocava um disco que repetia já sem vontade: "Baby, não deixe as cartas em cima da mesa. Talvez eu volte, talvez nunca mais... Me deseje sorte." e com os pés ela acompanhava o compasso do piano choroso, enquanto suas mãos batucavam inquietas (também acompanhando o som do piano) os braços da poltrona.
Julio chegou com o casaco, entregou-lhe e sentou-se no sofá à frente. Antes mesmo que pudesse dizer qualquer coisa, Raquel o interrompeu pedindo que colocasse novamente a música que tocara antes e, sem esperar pela resposta que viria, foi até a radiola e o fez.
Raquel voltou à poltrona.
- Julio, eu estava pensando em uma coisa...
- Raquel, antes eu queria...
- Julio, estava pensando em relógios de corda. Você já teve um? Já viu um?
- Sim, você sabe que meu avô colecionava antiguidades e que quase tudo o que tenho aqui herdei dele.
- Mas nunca vi um relógio de corda aqui!
- Vovó tratou de vendê-los quando meu avô... Ah, você sabe.
- Mas então, você já viu um, certo? Já parou pra pensar no mecanismo deles? É genial!
- Não, nunca tinha pensado nisso... Raquel, eu queria te falar...
- Julio, presta atenção: os relógios de corda não funcionam sem a gente. Imagina como era quando só existiam os relógios de corda. Se você esquecesse de dar corda um dia que fosse, perderia o tempo, entende? Sem dar corda, o tempo para.
- Mas mesmo assim, ainda assim, temos a noção de tempo.
- Noção... Só ter noção não resolve nada, Julio. Tem que dar corda, o tempo tem que continuar passando, os ponteiros andando... Entende? Noção não basta. Tem que dar corda, Julio!
- Entendo. Raquel...
- Seu avô dava corda neles todos os dias?
- Não me lembro... Acho que sim. Mas a minha avó não tinha paciencia. Talvez por isso tenha vendido todos.
- E você, Julio? Por que você não dava corda nos relógios?
Julio não respondeu, mas o silencio criado entre os dois agora entupia seus ouvidos, transbordando pelas frestas de portas e janelas, escorrendo entre os vãos do piso. Já não queria.
Raquel levantou-se da poltrona como que em um só pulo e caminhando até a porta, foi se despedindo:
- Julio, muito obrigada pelo casaco. Com esse frio que tem feito, não sei como ficaria sem ele. E Julio... não deixe as cartas em cima da mesa. Adeus.
Abriu ela mesma a porta, saiu e fechou.

quarta-feira, 27 de abril de 2011

Nada além disso

Rio o teu riso e nele mergulho tão profundo que por vezes sou âncora pra ali ficar, submerso no mundo novo que sai da sua boca. Volto do fundo e pela pressão do arranque ou tipo de empurrão místico, caio no labirinto imerso em cores que não sei quais nem mesmo que nomes têm, mas sei que são suas as cores. O vermelho fosco percorrendo os corredores estreitos e tortuosos, veias pulsando forte, mais forte e o que fica pra trás agora é quase inatingível.
Volto à tona, escorro em torno dos pés, pálido e frio, medo de não saber quem eu era antes de puxar essa cadeira e querer ouvir como foi o seu dia, a loira que esbarrou em você na entrada da padaria e não se desculpou, o café fumegante - "Não entendo como podem vender cafés tão quentes em copos plásticos. Não tem sentido!" - e a cadeira giratoria do escritorio que anda fazendo um barulho chato toda vez que troca a posição, crec-crec, deve precisar de oleo ou sei lá o quê, e eu? Sentado à sua frente, diluido em palavras baratas entre algumas cervejas, o que eu sou? Afundo.
Você não para de falar e isso agora soa como ameaça. Hipnotizador de serpentes, sabe a hora exata de usar aquela palavra ou o sorriso fechado e tímido que me faz permanecer nesse estado eterno de encantamento, despretencioso e vulgar. Me puxa de volta pro fundo e eu... eu me entrego.
Ainda feito âncora, permaneço submerso, eu, que nada sei além disso.